Aprovada na calada da noite, a PL da dosimetria tenta blindar financiadores do agro, afronta a Constituição e, ao contrário do que vendem ao gado, não salva Bolsonaro

A aprovação, de madrugada, do projeto de lei da dosimetria na Câmara dos Deputados não é um acaso de agenda. É sintoma. Quando o Parlamento decide votar de noite, longe da cobertura em massa da TV aberta e do olhar da maioria da população, a mensagem é simples: trata-se de um projeto que envergonha seus próprios autores e beneficiários.

No centro dessa manobra está um objetivo cristalino: reduzir o tempo de cumprimento de pena de um grupo muito específico de condenados – não o pequeno “bagrinho” da base, mas os financiadores e articuladores ricos, especialmente ligados ao agronegócio, que participaram ou bancaram o 8 de janeiro. E, ao contrário da narrativa espalhada para a militância bolsonarista, esse projeto não é um salvo-conduto para Jair Bolsonaro. Pelo próprio texto e pela lógica jurídica, ele é, na prática, um tiro no pé do ex-presidente.


1. Votação de madrugada: quando o Congresso age como réu, não como Poder

A PL da dosimetria foi aprovada na Câmara durante a madrugada. Não por acaso. Quando o tema é popular, quando o objetivo é “mostrar serviço” para o povo, a votação é em horário nobre, com cobertura de TV, transmissão da Globo, discursos inflamados. Foi assim no impeachment de Dilma Rousseff.

Desta vez, a escolha do horário revela o contrário: trata-se de um projeto percebido pelos próprios deputados como contrário ao interesse público, com forte rejeição social potencial. Não é algo para ser explicado em campanha; é algo para ser escondido na calada da noite.

E por que tanto sigilo? Porque dentro da própria Câmara há:

  • parlamentares diretamente envolvidos no 8 de janeiro;
  • financiadores e aliados políticos de quem planejou e pagou a tentativa de golpe;
  • interesses econômicos pesados do agronegócio, dispostos a comprar um “atalho jurídico” para não ver seus quadros atrás das grades.

Não é reforma de sistema penal para melhorar justiça. É projeto sob encomenda de quem tem dinheiro e medo de cadeia.


2. O que é dosimetria – e por que é absurdo tentar “personalizá-la” para o golpe

A dosimetria é o cálculo da pena: leva em conta antecedentes, reincidência, circunstâncias do crime, idade, entre outros fatores. É uma engrenagem geral do Código Penal. Por definição, não existe “dosimetria só para um crime específico” ou para “um grupo de amigos”.

Mudar a regra de dosimetria significa, juridicamente, mexer na parte geral do Código Penal e impactar todos os crimes: estupro, homicídio, sequestro, tráfico, organização criminosa etc. Não é possível – dentro da lógica constitucional – aprovar uma “dosimetria exclusiva” para os crimes ligados ao 8 de janeiro.

Quando o Congresso quer beneficiar um grupo específico de criminosos, a Constituição prevê apenas três instrumentos:

  • anistia (Poder Legislativo),
  • graça e indulto (Poder Executivo).

Só que existe um problema crucial: atentado contra o Estado Democrático de Direito é exceção constitucional à anistia. Ou seja, a própria Constituição fecha a porta para um perdão coletivo aos golpistas de 8 de janeiro.

Sem poder dar anistia, parte do Congresso tenta criar um remendo: mexer na dosimetria “só para eles”. Do ponto de vista jurídico, isso é um Frankenstein legislativo com altíssima chance de cair no Senado ou no STF.


3. A engenharia do texto: fingem que é geral, mas escrevem para um grupo

Para tentar driblar a inconstitucionalidade, o projeto faz o seguinte malabarismo:

  • promete reduzir a progressão de regime para 1/6 da pena em certos casos;
  • ao mesmo tempo, exclui explicitamente os crimes graves, como organização criminosa, dessa regra mais branda;
  • foca em situações ligadas ao atentado contra o Estado Democrático de Direito, como se isso fosse menos grave do que outros crimes pesados.

A mensagem implícita é perversa: o próprio texto trata o ataque ao Estado Democrático como se fosse “menos grave” que outros delitos – quando, na verdade, é o núcleo do golpe.

É aqui que mora a ironia: quem foi enquadrado como chefe de organização criminosa, como Bolsonaro, fica fora do benefício. A redação protege os financiadores e quadros do agro, além de parte do gado que não entrou na tipificação de organização criminosa, mas deixa de fora o comando político do golpe.


4. O projeto não salva Bolsonaro – e pode piorar a situação dele

A própria lógica do projeto, tal como exposta, exclui chefes de organização criminosa. Bolsonaro foi condenado por chefiar organização criminosa. Logo:

  • a regra de progressão mais branda não se aplica ao crime central que o mantém atrás das grades;
  • mesmo que todo o pacote de redução funcionasse em sua forma mais benéfica, a conta ainda o manteria anos em regime fechado.

Nas contas apresentadas na análise original:

  • Com 27 anos de pena, mesmo que se reduzisse a dosimetria e se aplicasse 1/6 (hipótese máxima e ainda assim improvável), Bolsonaro teria anos de Papuda pela frente, não um “passe livre” imediato.
  • E isso é só o primeiro grande processo. Ainda há joias, COVID, obstrução de justiça e outras ações penais a caminho, somando novas condenações, inelegibilidade prolongada e ampliação de tempo de tornozeleira.

Ou seja: mesmo no cenário mais otimista para a extrema direita, Bolsonaro não volta ao palco da política como liderança livre. O destino traçado é outro: período na Papuda, seguido de provável prisão domiciliar humanitária, já doente e politicamente destruído.


5. O verdadeiro cliente da PL: o agro tentando comprar prescrição

Se o texto não é para salvar Bolsonaro, quem é o cliente?

A análise é direta: o agro.

Segundo esse raciocínio, é o agronegócio que:

  • financia o projeto da dosimetria;
  • “compra” o trabalho de articuladores como Aécio Neves e do relator;
  • busca uma engenharia jurídica que reduza as penas a um patamar em que os processos prescrevam antes do trânsito em julgado.

Em outras palavras: a estratégia do agro não é discutir culpa ou inocência – é ganhar tempo até que a pena perca efeito jurídico. A dosimetria seria apenas o instrumento técnico para acelerar esse caminho.

Nesse cenário:

  • se a PL da dosimetria vingar, a pauta da anistia irrestrita morre, porque o agro não vai pagar duas vezes pelo mesmo fim (evitar cadeia);
  • se a PL cair no Senado, no veto presidencial ou no STF, quem perde é o “gado”: a base fanatizada, que acreditou que aquilo era “para salvar Bolsonaro”, mas foi usada como massa de manobra para proteger os financiadores.

6. O caminho tortuoso: Câmara, Senado, Lula e STF

Mesmo tendo sido aprovada na Câmara, a PL da dosimetria ainda precisa:

  1. Ser aprovada no Senado Federal, onde há menos adesão à bandalheira explícita aprovada na madrugada da Câmara.
  2. Passar pela sanção ou veto do presidente Lula – que pode vetar integral ou parcialmente e, inclusive, usar o prazo máximo para atrasar o processo.
  3. Enfrentar o controle de constitucionalidade no STF, que já se posicionou contra teses como a de juntar, artificialmente, crimes distintos (golpe de Estado + atentado contra o Estado Democrático) como se fossem um só para reduzir penas.

E há um ponto central:
Câmara e Senado não expedem alvará de soltura.

Mesmo que toda a engenharia legislativa passe, quem decide se alguém sai da cadeia é o Judiciário. Se o STF entender que a lei é inconstitucional na parte que interessa aos golpistas, ninguém sai.


7. Quem ganha, quem perde e por que a esquerda não deve entrar em pânico

O saldo político da análise é claro:

  • A direita que defendeu o pacote anticrime agora tenta desmontá-lo para proteger os seus – uma contradição que expõe o caráter oportunista dessa agenda.
  • O agro tenta comprar tempo e prescrição para seus quadros, usando a base bolsonarista como escudo discursivo.
  • O gado golpista – Débora do Batom, Dona Fátima de Tubarão, vendedores de pipoca e sorvete que acreditaram no golpe – pode até receber alguma redução prática de pena, mas continua sendo corpo descartável no tabuleiro.
  • Bolsonaro, mesmo com todas as manobras, continua condenado por organização criminosa, com horizonte de anos de prisão e eventual prisão domiciliar, sem viabilidade real de retorno à vida política ativa.

Para o campo progressista, a mensagem é outra:
em vez de pânico, lucidez.

A PL da dosimetria é juridicamente frágil, politicamente tóxica e revela a decomposição moral de um Congresso que age como réu, não como poder da República. Mas ela não é, nem de longe, a chave da liberdade de Bolsonaro. Ao contrário: escancara que até os seus padrinhos ricos já trabalham por uma saída própria – e o deixam cada vez mais sozinho no corredor que leva da Polícia Federal à Papuda.

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